quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Cura e Cuidado

          "Cura-me Senhor, e serei curado..." Jeremias 17.14.
          Conta-se uma historinha de que, certa vez, Jesus desceu à terra, meio disfarçado e foi conhecer a realidade do SUS. Entrou na fila. Sentiu na pele o problema e não pensou duas vezes: “vou usar um jaleco, e atender esse pessoal porque estão sofrendo demais.” E assim o fez. A fila era enorme e Jesus precisava ser rápido. Entrou o primeiro da fila, um senhor de muletas, com a perna enfaixada, mal e mal conseguindo caminhar. Jesus estendeu a mão na cabeça dele e disse: “O senhor está curado. Pegue sua muleta e ande.” 2 minutos depois, ele sai da sala com a faixa dobrada em uma das mãos e na outra a muleta. Antes de entrar no consultório, o segundo da fila perguntou, meio desconfiado: “e ai, como é o novo doutor?”
O senhor curado responde: “igualzinho aos outros: mal deixou eu falar o que eu tinha, nem me examinou nem mesmo olha pra cara da gente!”.
           
            Curar: ato ou processo?
            Curar é muito mais que eliminar uma doença, mas também é cuidar de quem está doente!

            O verbo curar nos faz lembrar de um ato ou um processo de intervenção “mecânica” do médico na “peça” do corpo danificado, como por exemplo: hemodiálise, ponte de safena etc.       
A ciência e a tecnologia procuram, através de pesquisas com terapia com células-tronco, por exemplo, cura para diversas doenças como cegueira, problemas cardíacos, etc

A ciência pode trazer uma cura para uma doença. A tecnologia pode “montar” um bebê, escolhendo a cor dos olhos, o sexo, etc. Para a ciência, a cura vem dos resultados das pesquisas de laboratórios e experiências. Para a tecnologia, a cura pode significar um produto a ser comercializado.

            Mas na fila do SUS a ciência e tecnologia não entram. O que vale é tempo e dinheiro. Quanto mais pacientes em menos tempo, melhor.

           
Para muitas igrejas, curar, significa Deus intervir através da poderosa oração de um pastor, que coloca a mão sobre a cabeça, invoca o nome de Jesus e ordena que aquela doença seja curada ou que Satanás saia daquele corpo e leve a doença consigo. Se curou, o pastor é poderoso, e Deus é fiel. Se não curou, faltou fé do “paciente” daquela igreja restando a dúvida: Deus é fiel? Deus não quer me curar?

            Tanto para a medicina moderna, como para as igrejas neopentecostais, curar é o resultado de uma ação humana. Não precisa “nem olhar pra cara do sujeito, nem deixar ele falar direito nem examinar a fundo”. É como diz aquela sábia propaganda: Calmador, só não cura dor de amor!
           
            Por traz de uma doença, que precisa de um “calmadorhá um doente, que antes de mais nada precisa ser cuidado nas suas dores de amor, da alma, das angústias, dos remorsos e nas dores que ferem sua dignidade humana. Por traz de uma enfermidade, há um enfermo que precisa ser cuidado nessas angústias.

            Tomar um “Calmador” pode curar a dor, mas a dor de amor precisa ser cuidada. O ato de tomar um comprimido pode acabar com a insônia. Mas também é preciso cuidar da causa da insônia.
           
Internar alguém que fracassou no suicídio não é a única maneira de curar, mas também é preciso cuidar desta pessoa nas suas frustrações e decepções, redirecionar suas mágoas com o perdão e fazer parte da mudança de sua vida. Isso chama-se cuidado.

            Não basta curar o vício do tabagismo ou alcolismo, é preciso cuidar do fumante e do alcoólatra nas suas ansiedades. Deixar de fumar ou beber pode ser uma cura forçada pela moral ou exigência dos outros. Mas também pode ser resultado da ética do cuidado e da compreensão dos que estão ao redor.
                                     
            Creio que uma terapia realmente eficaz na cura de uma doença só é possível se for acompanhada pelo cuidado ao enfermo. É dar o “calmador”, ou seja, o remédio, o comprimido etc, mas cuidar da dor dos relacionamentos rompidos, da falta de perdão.            Por isso diz Jeremias 17.14: “cura-me Senhor e serei curado...” Jeremias está dizendo: cura a dor dos meus sentimentos de arrependimento, desespero, desesperança, desamor e egoísmo. Esse cuidado só é possível pelo Evangelho acolhedor. Só o evangelho cura porque cuida da dor do pecado, da ofensa, da mágoa, do remorso e do desespero. Sim: Jesus faz de tudo para cuidar da nossa dor!
           
Jesus resolveu cuidar de nossa dor, assumindo nossas dores. Jesus resolveu cuidar da morte, assumindo a morte! E eu posso afirmar com certeza: que o amor de Jesus só tem sentido na dor. Deus só se revela realmente como Ele é na dor. Que decepção e escândalo para os que esperam um Jesus que nos transforma em “super-heróis”.

E Jesus, para se revelar a nós, usa caminhos “contrários”, na contra mão. Enquanto o ser humano quer que Deus o transforme em “super-herói”, a Bíblia nos mostra que somente quem conheceu Deus, na contrariedade do que os homens pensam, é que o conheceu realmente. Paulo nos explica em várias passagens bíblicas que foi na fraqueza que ele conheceu a força de Deus; foi na escassez que ele conheceu a providência de Deus, foi no espinho na carne que ele aprendeu a humildade. Mas porque Deus se revela de forma contrária a nós?

            O Padre Dr. Leo Pessini diz que a sociedade de hoje quer calar a pergunta sobre o significado da dor para nossas vidas. As pessoas querem apenas o comprimido, mas não querem mais cuidar da dor.
           
            As pessoas esperam que a ciência e a tecnologia revolucione a indústria farmacêutica e produza muito “calmador”, que apenas cure a dor, mas que se esqueça da dor do amor, afinal, não temos tempo para ouvir, acolher, nem chorar, nem abraçar a quem sofre!!!

Não é a intenção do Padre Leo dizer que o sofrimento nos torna mais merecedores da salvação que é de graça pela fé, mas nos deixa mais empáticos com a dor humana, assim como essa menina quis ser empática, ou seja, sentir como seu irmão sente!

A razão organiza nosso sistema de vida, mas não consegue dar sentido para a vida. A razão pode inclusive racionalizar, explicar os passos da fé, mas não nos faz viver a fé. Vamos esquecer que somos divididos em “corpo” e “alma”, que somos “materiais” e “espirituais” e vamos pensar que somos um SER criado à imagem e semelhança de Deus. E quando essa imagem ameaçada pela enfermidade, pecado e culpa, surge a necessidade do acolhimento do ser com o evangelho.

Vou dar mais um exemplo: a razão diz pra qualquer ser humano que “fumar faz mal” a saúde. Mas o fumar não é produto da razão, mas na busca do equilíbrio do SER: pode ser por pertencer a um grupo, ou de abafar alguma revolta, ou da falta de coragem de mudar as coisas que precisam ser mudadas, ou da decepção de sentir um fracassado, ou na sensação de se sentir insignificante.

Enquanto houver essas sensações que desestabilizam a emoção, pode colocar a foto que for na embalagem: não haverá mudança de hábito.

O suicida cristão racionalizou que “quem se mata vai por inferno”, mas seu ser não cuidado é que o fez tomar tal atitude, não porque queria morrer, mas porque não encontrou alguém que cuidasse de seu SER: Excesso de culpa? Excesso de “Deus vai te castigar”? cuidar de um suicida em potencial é muito mais do que dizer: “a corda vai obstruir sua passagem de ar”, ou, “a bala irá se alojar em sua cabeça e vc terá uma hemorragia”. Isso ele sabe; ele quer que alguém cuide de seu ser! E quer viver como alguém aceito pelo que ele É e não pelo que produz ou aparenta ser!

“O sofrimento só é intolerável quando ninguém cuida”. Assim, a dor para alguns pode ser curada com um “calmador”, mas o sofrimento do SER só é cuidado com acolhimento, perdão e empatia! Diz Pessini, que o “não-sentido” é que faz aumentar a dor!

            Não estou fazendo aqui um discurso de exclusão: ou a fé ou remédio, ou igreja ou consultório, ou sofrimento ou “Calmador”, estou fazendo um exercício de reflexão para uma sociedade que aprendeu com a tecnologia e ciência, que quer curar apenas com o “Calmador”, mas calar a voz de Deus que quer cuidar da dor do ser humano.

            Eu acredito que o trabalho da Capelania Hospitalar seja muito mais do que levar o nome da Igreja Luterana para dentro do Hospital. É muito mais do que estatísticas ou cadastros. É muito mais do que facilitar a vida do pastor que está em uma cidade longe de seu congregado enfermo. Isso seria muito pouco! Eu, particularmente, pastor Rafael, não me conformaria com essa função.

Capelania Hospitalar é a mensagem da Igreja Cristã, do acolhimento incondicional do SER!  É cuidar da dor do amor das pessoas, ou seja, ouvindo e acolhendo ao enfermo que chora, ora, agradece, chinga Deus, se revolta, que barganha etc.! É lembrar aos filhos de Deus da Aliança do Batismo.

            Capelania é mostrar que Jesus não é mais um médico igual os outros, que não olha, não examina e nem deixa falar. Lutero diz que Cristo se manifesta na face de quem sofre e Cristo se manifesta ao que sofre com o cuidar de seu SER. E o evangelho mostra um Jesus que olha para nós, que nos examina e nos deixa falar sim. Nos deixa perguntar “onde estava Deus numa hora dessas”. Curar é cuidar. E cuidar é ouvir: ouvir os mais profundos medos, lamentos e agonias. E mesmo sem saber o que dizer ao que questiona, sofre e se revolta, cuidar ainda sim é ouvir, porque cuidar é suportar o vazio em silêncio! (Dr. Alexandre Munich) Desta forma podemos orar com Jeremias: "cuida-me Senhor, e serei curado.

Rev. Rafael Wilske, mensagem elaborada em outubro de 2010.
            

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